segunda-feira, 29 de março de 2010

Primeira Carta

Querido irmão padre Fábio Tenho saudade dos meus dois irmãos que estão com Deus. Meu irmão Sávio morreu aos 21 anos de idade. Jovem, belo, apaixonado pela vida. Um acidente de carro roubou-lhe a possibilidade de prosseguir em sua travessia.
Vi meu irmão morrendo. Estava ao seu lado. Ele dirigia e contava histórias de um amanhã que não chegou. Cantamos sozinhos naquela noite prolongada. Nós dois. Eu tinha apenas 15 anos e, por um milagre, prossegui. Vi seu soluço inconsciente, seu suspiro final. Tentei abraçá-lo, enquanto vozes se aproximavam. Meus braços não se moviam. A dor física era pequena perto da possibilidade da separação. Olhei-o com ternura. Separamo-nos. Meu irmão partia sem ter o direito de se despedir. Sem dizer o que gostaria que fizéssemos por ele. Apenas partiu. Minha mãe vestiu-se de preto por algum tempo. As sombras tomavam seu semblante, e gritos de dor eram entremeados por dias de silêncio. Meu pai era só silêncio. Em suas orações, lágrimas solitárias pediam a Deus que acolhesse o fruto do seu amor. A morte nunca tinha estado tão perto de mim. Acho que não pensava muito nela. Nos dias em que fiquei engessado, tentando recompor partes quebradas do meu corpo, quebrei-me em perguntas sem respostas. Por que o caminhoneiro dormira? Por que ele partira e eu ficara? Por que apenas o meu banco quebrara, jogando-me um pouco para trás, e o dele não, se ele era maior do que eu?
Antes do acidente com o Sávio, convivi com a morte quando meu avô Gabriel partiu. Pouco tempo antes. Sofri também, mas compreendi que o seu sofrimento físico tinha chegado ao fim. Assustei-me quando o vi num caixão. Lembrei-me dos dias em que eu ficava, criança, dando aulas com um quadronegro para ele e minha avó. Chorei a certeza de não mais ouvir suas anedotas singelas e suas histórias de uma Síria do passado. Fazia poesia com simplicidade meu avô Gabriel.
Mas a morte do Sávio... Eu sou o filho caçula. Dormíamos no mesmo quarto, e ele fazia-se de forte investigando todos os lugares possíveis de haver algum perigo que pudesse nos atingir. Sorria quando, depois de certo suspense, comunicava que nem debaixo da cama nem atrás das cortinas havia monstros ou figuras semelhantes. Podíamos dormir em paz. Era carinhoso. Irreverente. E gostava de viver.
Meu irmão Júnior também partiu. Sua alegria pura, sua ingenuidade de uma infância sem fim, presentes da síndrome de Down, fazem falta. Meu pai dizia da surpresa difícil quando soube que meu irmão era diferente das outras crianças. Minha mãe também estranhou a sua chegada. Mas isso foi por pouco tempo. Júnior tornou-se o centro das atenções. Cantarolava sozinho e sorria sem economias. Beijava, abraçava e vez ou outra chorava. Tentávamos entender onde era a dor. Não era fácil, sua melhor comunicação vinha da sua alegria apenas. Na cadeira de balanço meu pai brincava com ele. Minha mãe dava-lhe na boca o alimento que nutria seu corpo e sua alma. Sua partida deixou um vazio imenso. Trinta e poucos anos e nada mais. Brincou de dia. Brincou no hospital e se foi... brincando.
Irmãos que partiram prematuramente. Irmãos que continuam presentes na capacidade que tenho de pensar neles.
Quando nos conhecemos, padre Fábio, eu não imaginava que nossas almas tivessem raízes comuns. Fomos plantados em solos fertilizados com sofrimentos e esperança. Sua poesia misturada a alguma tristeza tornam os seus dizeres mais profundos. Seu jeito de falar, sua forma de estar presente, sua capacidade de ouvir a dor, tudo isso foi fazendo com que nossa travessia ganhasse sentidos novos. Você é meu irmão, sim, padre. Não em substituição àqueles que partiram, mas em presença de Amor. Com você, sinto-me livre para errar com as minhas verdades provisórias. Com você não tenho pressa. Gosto de ouvir suas canções e suas histórias. Admiro seu jeito de falar de Deus, sua estética religiosa, seu talento humano. Faz algum tempo que partilhamos projetos e dúvidas, e tem sido tão bom. A felicidade só deixa de ser utopia quando nos completamos com a inteligência e o afeto do outro.
Não entendo a tristeza como ausência de felicidade. Acho que elas coexistem. Somos felizes e tristes. Felizes porque tentamos entender a nossa missão. Tristes porque assim tem de ser. A tristeza nos empresta respeito ao outro e percepção mais aguçada da dor. Talvez tristeza seja ausência de alegria, de riso fácil, não de felicidade.
Hoje é véspera de um outro dia qualquer e eu estou triste. Acordei com saudade do meu pai. Tantas coisas aconteceram em minha vida depois que ele se foi. Meu pai. Quando eu escrevi a sua história como um presente em seu aniversário de 80 anos, não tive dúvidas quanto ao título: Memórias de um Homem Bom. Sua simplicidade falava-me de um Deus que mora na ternura e que acolhe. Sua sabedoria falava-me de um Deus que não julga, mas compreende; que não afasta, mas ama. Seu olhar permitia-me viajar por aventuras ora corretas, ora necessárias para a minha curiosidade. Caí algumas vezes. Mas eu sabia que ele estava ali para qualquer arranhão mais doloroso. Ele não está mais aqui comigo. Está em mim, porque trago muito do que ele deixou. Mas não me abraça. Não sorri para mim. Não me diz coisas que cicatrizem as minhas feridas. Tenho saudade do meu pai, padre. Do seu colo, das suas cantigas amadoras, das histórias recontadas de uma vida marcada pela dor. Meu pai sofreu muito. E sem lamúrias. Minha fortaleza partiu para junto de Deus. Eu entendo que estamos aqui de passagem. Tenho fé de que há um outro porvir, um lindo céu, que nos aguarda, mas isso não retira de mim a saudade que dói.
Meu pai falava de mim com orgulho, do seu filho escritor. E eu brincava com ele que não havia idade para ingressar no mundo das letras transformadas em história ou em dizeres poéticos. Cora Coralina estreou na literatura aos 76 anos de idade e fez da vida e da morte uma poesia:
"Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos".

(do livro "Carta entre Amigos") - Fábio e Chalita

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